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Povo Huni Kuin e a influência da cultura nas definições de saúde e doença
“Psicologia e questões sociais”é uma coluna mensal da Revista Clio Operária, que busca trazer discussões sobre política, atualidades e saúde mental à luz da psicologia.

Recentemente, durante o desenvolvimento de determinado trabalho acadêmico, comecei a pensar sobre os conceitos de saúde e doença e a influência sociocultural ao qual ambos os conceitos estão submetidos. Tal trabalho permitiu que me debruçasse pela primeira vez na leitura sobre a relação de diferentes povos com as definições supracitadas, mais especificamente sobre o povo Huni Kuin. O presente texto surge da empolgação resultante do trabalho mencionado, que possibilitou não apenas uma primeira compreensão dessas distinções, mas a reafirmação da necessidade de se pensar saúde de forma ampla e contextualizada.
O povo Huni Kuin (Pessoas Reais; Seres Humanos) habita o estado do Acre e a nascente do Rio Purús, no Peru, chegando a 5000 indivíduos no total. A cultura Huni Kin enxerga o corpo como uma entidade em contínuo estado de criação fora do ambiente e através da ação de outras pessoas, além disso, o corpo acumula os efeitos do que é experienciado pelo sujeito, bem como todo o conhecimento adquirido, de forma que corpo e conhecimento são indissociáveis.
“Conhecimento não é um campo fechado. Tudo o que o mundo contém e o corpo encontra pode se tornar conhecimento […] Corpos diferentes acumulam ‘conhecimento’ de formas diferentes dependendo das suas histórias individuais (ALVES; RABELO, 1998)”.
Dessa forma, a ação social pode ser considerada a exteriorização do conhecimento adquirido, sendo necessário que o corpo aprenda para que possa agir socialmente.
Pensar a relação do povo Huni Kuin com o corpo é importante para compreender a visão dos mesmo sobre os processos de doença e saúde. Para esse povo, saúde pode ser definida como a combinação entre o conhecimento acumulado e a capacidade de agir socialmente, sendo que a doença é então um distúrbio no poder de conhecimento do corpo, uma vez que esta interfere o processo de aprendizado e a capacidade de absorver conhecimento de maneira eficaz, e afeta negativamente o atributo de pensar e sentir. O corpo doente é tratado de plantas e medicamento, levando em conta que doenças novas exigem materiais e conhecimentos novos.
Analisar questões relativas à saúde e doença requer necessariamente a consideração do contexto sociocultural em que os sujeitos estão inseridos e como esse contexto é responsável por atribuir sentido à essas experiências. Assim como a doença, a preocupação com a saúde é inerente a vida humana, porém cada cultura possui conceitos acerca do que é ser/estar doente ou saudável, assim como classificações dos sintomas, etiologia, gravidade e diagnóstico das doenças, que na maioria das vezes rompem com as definições do modelo biomédico.
Ao voltar-se para o atual contexto, é interessante a etiologia ao qual o povo Huni Kuin atribui à epidemia do COVID-19. Para eles, o desmatamento das florestas através do uso predatório da mesma pelo sistema de produção capitalista, tem como inevitável consequência a reação dos seres que nela habitam, pensamento compartilhado por outros povos indígenas, como relata Davi Kopenawa:
“Ao destruir cegamente as florestas tropicais, sua biodiversidade e os povos indígenas que as habitam com sabedoria, os ‘Povos da Mercadoria’ (como nos rotulou Davi Kopenawa) acabam virando contra si mesmos as consequências de sua predação desenfreada, tornando-se, assim, a vítima final de sua própria ‘hybris’. Essa é a mensagem que os xamãs Yanomâmi tentam nos transmitir há décadas”.
No entanto, é possível notar que apesar das consequências explícitas, o momento atual têm sido visto como uma oportunidade para os “povos da mercadoria” darem continuidade à exploração dos recursos naturais e “passar a boiada” — como dito pelo ministro do meio ambiente, Ricardo Salles — mudando as regras de proteção ambiental e evitando críticas e processos na justiça, enquanto o país está ocupado tentando sobreviver a uma pandemia sem precedentes que, de acordo com o observatório Quarentena Indígena, até o momento já atingiu 93 povos, resultando em 2390 infectados e 236 mortos, como resultado da condução extremamente falha do atual (des)governo.
Maria Luisa Lima é estudante de Psicologia e pesquisadora sobre violência e questões raciais no Núcleo de Pesquisa em Violência e Psicologia Jurídica (NUPEV - PJ).